Condições para uma guerra justa [Tradução]
“Conditions of a Just War”, pelo Venerável Arcebispo Fulton J. Sheen
A tragédia dos nossos dias é a de que tantas mentes sejam confrontadas com problemas, tragédias inesperadas ou catástrofes para as quais não têm um princípio de solução. O cristão jamais se encontra nesse dilema porque possui sua filosofia de vida e hierarquia de valores prontas antes de que uma dificuldade se apresente. A diferença entre o pagão moderno e o verdadeiro cristão é que aquele se depara com estranhos caminhos sem quaisquer marcações como guia, enquanto o cristão tem um mapa que cobre todas as estradas; o pagão tem necessidade de mensurar as coisas, mas não tem com que fazê-lo, enquanto o cristão conta com seu padrão de valores já estabelecido antes de que um objeto se apresente para avaliação. O cristão é como um carpinteiro que carrega no bolso sua régua — ele não sabe se precisará medir pisos, tetos, casinhas de cachorro, palácios, cinemas ou igrejas, mas, independentemente de precisar ficar de pé ou agachar-se, nunca se desfaz de sua régua, nunca decide ser um liberal e fazer 1 pé medir 13 polegadas, ou ser um reacionário e fazê-lo medir 11. Para ele, 1 pé mede sempre 12 polegadas, a despeito da educação progressiva. O moderno, por outro lado, usa de princípios morais como de roupas: utiliza um conjunto de princípios em determinado momento, outro conjunto em outro momento, assim como veste calças brancas para jogar tênis, um preto formal para jantar, bermudas na praia e absolutamente nada em sua banheira. Seus gostos e desgostos determinam seus princípios morais, em vez de seus princípios morais determinarem seus gostos e desgostos.
A diferença entre o moderno e o cristão existe não apenas em relação à educação, economia, política e ciência, mas até mesmo em relação à guerra. O cristão não espera até que a guerra seja declarada e, depois, sob a influência da propaganda, das emoções e dos slogans, escarnece de sua justiça ou injustiça. Ele possui um corpo de princípios de justiça baseado na Eterna Razão de Deus, anterior a qualquer conflito. O que são esses princípios, aplicados à guerra, é o assunto deste capítulo. Em outras palavras, pode uma guerra ser justificada? A questão está formulada de modo a ignorar completamente esta guerra1. Tudo o que queremos fazer agora é delinear os princípios católicos invariáveis para uma guerra justa — princípios que já tínhamos antes da Guerra Civil, antes da Revolução Francesa, antes de Lepanto e antes de Constantino, e que teremos ainda muito após este confronto.
Nosso procedimento será traçar, em geral, os determinantes de um ato moral e, então, aplicá-los à guerra. Em todo ato moral há três elementos que precisam ser considerados: primeiro, o objeto; segundo, a intenção; e, terceiro, as circunstâncias. Nenhum destes deve ser contrário à ordem moral para que um ato seja considerado moralmente bom. Para expressar essa ideia, utilizamos frequentemente uma velha máxima latina: bonum ex integra causa, malum quocumque defectu, isto é, todos os determinantes morais de um ato devem ser bons — seu objeto, sua intenção e suas circunstâncias. Se apenas um deles não é bom, o ato não pode ser tido como inteiramente bom.
Para ilustrar: imagine que alguém queira saber se ajudar um amigo pobre, que precisa de mil dólares para salvar seu negócio, é um ato moralmente bom. Pergunte, primeiro: qual é o propósito da doação? Ajudar o próximo. Isto é obviamente bom — mas apenas isto não torna o ato moralmente bom, pois outros dois pontos devem ser também considerados.
Segundo: qual é a intenção ou motivo da ação? Um ato pode ser bom e sua motivação má. Se a intenção, ao fazer-se a doação, é aliviar o fardo financeiro do amigo, de modo que ele possa continuar dando a si mesmo e sua família os confortos normais da vida, logo, até então, o ato é moralmente bom; mas se a motivação é cair nas graças de sua esposa e, ultimamente, induzi-la a divorciar-se dele, então o ato está viciado por uma intenção maldosa.
Em terceiro lugar, é preciso perguntar: quais são as circunstâncias? Se a doação é feita através da intermediação de uma amiga da esposa que, ao efetuá-la, ridicularize a santidade do laço matrimonial e justifique o divórcio sob o argumento de que “todo o mundo faz”, o bom ato seria viciado e estragado pelas circunstâncias imorais que o estariam envolvendo.
Nunca será demais repetir que os três elementos precisam ser bons: a ação em si, a intenção e as circunstâncias. Um ato deve, portanto, ser bom não apenas em seus fins, mas também em seus meios. É isso que o pagão moderno esquece: ele pensa que porque os fins são bons, pode então utilizar-se de quaisquer meios que deseje. Não! Os fins nunca justificam os meios. E, incidentalmente, para aqueles que foram enganados por mentiras, os Jesuítas jamais ensinaram qualquer coisa além dessa tradicional doutrina cristã.
Apliquemos, agora, esses princípios à guerra. Para ser justa, uma guerra precisa ser boa em seu objeto, intenção e circunstâncias:
1 – O objeto precisa ser bom, ou seja, uma guerra precisa ter uma causa justa. Ora, há dois tipos de guerras, as defensivas e as ofensivas. Uma guerra defensiva é justa em sua causa se é realizada para defender um direito essencial e fundamental injustamente negado. Uma guerra ofensiva é justa em sua causa se for o único meio de preservar um direito ou justiça essenciais e fundamentais injustamente negados. Aqui supõe-se, é claro, que a guerra seja o último recurso na preservação da justiça, que outros meios pacíficos tenham sido buscados, e que a importância da justiça a ser defendida seja proporcional à gravidade dos males que a guerra poderá causar. Como disse Henri de Gante, na Idade Média: “Há duas maneiras de se combater: pela discussão ou pela violência; sendo a primeira peculiar ao homem e a segunda aos animais selvagens, dever-se-ia recorrer a esta apenas quando aquela é malsucedida”. A guerra não pode ser justa para ambos os lados ao mesmo tempo. Direitos duvidosos não proporcionam uma causa justa. Aqueles que são autoridade estão sob a grave obrigação de ponderar todas as razões, pois a guerra não é um problema político, mas moral e religioso. Havendo dúvidas quanto a uma causa justa para a guerra, a disputa entre os estados deve ser resolvida de outra maneira, como pela arbitragem. Sob nenhuma circunstância um cristão pode aceitar a doutrina de Stephen Decatur: “Meu país, certo ou errado”. Um slogan desse tipo pressupõe que não haja leis acima de uma nação, nem mesmo as leis de Deus — logo, o que quer que uma nação decida fazer está correto. Ao contrário, a atitude cristã é: se nosso país está errado, vamos endireitá-lo e, então, morreremos por ele, se necessário; assim, ao morrer por nosso país, estaremos defendendo sua justiça, porque esta será uma com a Justiça Divina.
2 – Uma guerra deve ser boa ou correta não apenas quanto ao seu objeto ou causa, mas também em sua intenção. A única intenção que pode justificar uma guerra é a de promover o bem comum e evitar o mal. O bem comum, aqui, significa não exclusivamente o bem comum de uma nação específica, mas do mundo, uma vez que nenhuma nação, hoje, é hermeticamente fechada em si mesma, mas sua ordem e prosperidade encontram-se inseparavelmente unidas a outras nações.
Ainda que uma guerra tenha sido declarada por uma autoridade legal e por uma causa justa, esta poderia tornar-se injustificável por conta de uma intenção errada por parte daquele que a levantou, por exemplo, por razões de vingança civil, para satisfazer um desejo de dominação ou para criar discórdias internas de modo a incitar uma revolução. Esta última aplica-se à técnica comunista de utilizar mesmo uma guerra justa para provocar uma guerra civil.
A guerra é um instrumento terrível, a última ferramenta a ser utilizada como recurso para a defesa da justiça, e para utilizá-la é preciso um coração puro e mãos limpas. Ninguém, portanto, deve jamais confundir slogans com intenções. A civilização e a cultura não são prêmios de batalha e, sendo assim, não devem ser utilizadas como pretextos para ela.
3 – Uma guerra, para ser justificada, precisa ser boa não apenas em sua causa, não apenas em sua intenção, mas também em suas circunstâncias ou métodos. Um mau método poderia viciar uma boa intenção, por exemplo, circular literatura suja visando angariar fundos para uma maternidade. A Igreja é muito enfática quanto às circunstâncias de uma guerra poderem afetar sua moralidade. Em 1937, por exemplo, quando o governo mexicano estava perseguindo a religião com a fúria de nazistas, houve aqueles que, evidentemente, entenderam que uma revolta pela força seria justificada. Por esta razão, o Santo Padre Pio XI, em março de 1937, dirigiu a seguinte carta aos bispos mexicanos:
“A Igreja condena toda rebelião injusta ou ato de violência contra o poder civil apropriadamente constituído. (…) Embora seja verdade que uma solução prática dependa de circunstâncias concretas, é nosso dever, no entanto, lembrá-los de alguns princípios gerais que se deve ter sempre em mente: que os métodos utilizados para reivindicar direitos são meios para um fim, ou constituem um fim relativo, não um fim último ou absoluto”.
Por exemplo, uma arma é um meio; ela não se justifica simplesmente por ser utilizada, mas devido à razão pela qual é utilizada. Sua moralidade é relativa a algo fora de si mesma, pois há um mundo de diferença entre uma arma usada para abater um urso e uma usada para atirar num tio rico.
“Que, como meios para um fim, os métodos de reivindicação de direitos devem ser atos legais e não intrinsecamente maus.”
Em outras palavras, os fins não justificam os meios. Nenhuma vantagem, grande quanto seja, deve ser obtida às custas da violação de uma lei moral. Eu não devo acertar um milionário na cabeça para pegar dinheiro a fim de comprar ambulâncias para os feridos.
“Que, uma vez que os métodos de reivindicação de direitos devem ser meios proporcionais a um fim, devem ser utilizados apenas enquanto parecem ser capazes de atingir aquele fim, no todo ou em parte, e de modo tal que não tragam à comunidade dano maior do que aquele que deveriam remediar.”
Por exemplo, um bombardeiro é um meio para se vencer uma guerra: usá-lo para bombardear hospitais não é proporcional à vitória da guerra e, portanto, injustificado. Pode não haver limites para o que os homens irão fazer em uma guerra, pois, fisicamente, podem fazer qualquer coisa; mas há um limite para o que devem fazer em uma guerra, pois, moralmente, não devem fazer certas coisas. Por exemplo, não devem matar prisioneiros de guerra, fazer uso impróprio de uma trégua ou forçar povos conquistados, particularmente as mulheres, a marchar diante dos soldados rumo à batalha. A Igreja Católica crê oficialmente que o bombardeio aéreo de populações civis é um método de guerra injustificado, e o L’Osservatore Romano do Vaticano, em 10 de junho de 1938, declarou que os protestos mundiais contra bombardeios na Espanha eram justificados pelo fato de que os centros atacados não guardavam qualquer interesse militar.
Quando, então, um indivíduo é confrontado com os problemas da guerra, deveria fazer-se as seguintes perguntas: é justa a causa pela qual meu país vai à guerra? É ela grave e proporcional aos males que hão de seguir-se? Serve à defesa de direitos básicos que não poderiam ser preservados de outra forma, ou para expandir posses e preservar uma certa forma de economia ou política? Em segundo lugar, supondo que a causa seja justa: meu país tem uma intenção correta? Está ele entrando em guerra para salvar empréstimos feitos a países estrangeiros, ou empréstimos para restaurar a ordem internacional, com base na justiça? Em terceiro lugar, são seus métodos justificados? Está ele utilizando-se de certas forças anti-religiosas? Está ele conduzindo a situação de modo a entender que a guerra é um conflito entre estados, e não entre indivíduos? Seus métodos conduzem a uma paz verdadeira, sem vinganças? Apenas quando essas três questões acerca de um fim moralmente bom, intenções corretas e métodos justificáveis puderem ser respondidas positivamente é que uma guerra pode ser justificada. Esses princípios são tão independentes de propagandas e emoções quanto o Sol é independente dos métodos do governo. Tais princípios antecedem a esta e qualquer outra guerra, pois a ordem do universo é baseada na justiça de Deus. Assim como uma embarcação pode manter sua rota porque sua estrela é fixa, também um cristão pode manter seu raciocínio correto e sua mente limpa em meio a um mundo de interesses próprios e distrações, porque sua justiça está fixada em Deus, e tudo o mais revolve ao redor. Nosso conceito de justiça é tão imutável quanto o Espírito Eterno de Deus:
“Nos processos corruptos deste mundo pode a justiça ser desviada pela mão dourada do crime, e muitas vezes o prêmio compra a lei; mas não lá em cima, onde não valem manhas; o processo não padece artifícios, e até mesmo nos dentes e na fronte do delito teremos de depor.”
(Hamlet, Ato III, Cena 3)
Santo Tomás trata de duas questões subsidiárias da guerra. Primeiro, é em algum caso permitido desobedecer a ordem de um superior legítimo? Ele responde:
“(…) de dois modos pode se dar que um súdito não esteja obrigado a obedecer em tudo ao superior. De um modo, por causa da ordem de um superior de mais elevada categoria. Assim, diz o Apóstolo: ‘Aquele, pois, que resiste à autoridade, resiste à ordenação de Deus. E os que resistem, atraem sobre si próprios a condenação’ [Rm 13, 2. Cf. Santo Agostinho, De Verb. Dom., viii]. E comenta a glosa: deves obedecer ao curial quando te manda o que é contrário à ordem do procônsul? Mais: quando o procônsul dá uma ordem e o Imperador outra, porventura duvidas se deves desobedecer àquele para servir a este? Logo, quando o Imperador dá uma ordem contrária ao que Deus manda, devemos desobedecer àquele para obedecer a Deus. De outro modo, o inferior não está obrigado a obedecer ao superior quando este lhe manda o que não é da sua alçada. Pois, diz Sêneca: ‘Erra quem pensa que a servidão envolve o homem na sua totalidade. Pois a sua melhor parte está isenta dela; porquanto, ao passo que o corpo está adscrito e sujeito ao senhor, o espírito é livre’. Logo, no que respeita ao movimento interior da vontade, ninguém está obrigado a obedecer senão a Deus.
Mas estamos obrigados a obedecer a outrem no que respeita aos atos corporais externos. Contudo, no que pertence à natureza do nosso corpo, a ninguém estamos obrigados a obedecer, senão só a Deus, porque todos os homens são iguais por natureza; por exemplo, no que respeita ao sustento do corpo e à geração da prole. Portanto, os escravos não são obrigados a obedecer ao senhor, nem os filhos aos pais, quando se trata de contrair matrimônio, de conservar a virgindade ou de coisas semelhantes. Mas, no atinente à disposição dos atos e das coisas humanas, o súdito está obrigado a obedecer ao superior pela razão mesma de ser superior. Assim, o soldado ao chefe do exército, em matéria de guerra; o escravo ao senhor, no atinente à execução das obras servis; o filho ao pai, no que respeita à direção da vida e da casa, e assim por diante.”2
Em seguida, ele discute se os clérigos deveriam ser chamados para combater na guerra:
“Ora, os exercícios bélicos repugnam soberanamente as funções a que são destinados os bispos e os clérigos por duas razões. Primeiro, por uma razão geral, a saber, que esses exercícios trazem as maiores inquietações e, por isso, impedem grandemente a alma da contemplação das coisas divinas, do louvor de Deus e da oração pelo povo, sendo tudo isso obrigação dos clérigos. Portanto, assim como os negócios, por se enredar neles a alma demasiadamente, são interditos aos clérigos, assim também os exercícios bélicos, segundo aquilo da Escritura: ‘Ninguém que se alistou na milícia se embaraça com negócios civis, se quer agradar àquele que o alistou’ [2Tm 2, 4]. Segundo, por uma razão especial. Pois todas as ordens dos clérigos se dirigem ao ministério do altar, no qual está sacramentalmente representada a Paixão de Cristo, conforme aquilo da Escritura: ‘Todas as vezes que comerdes este pão e beberdes este cálice, anunciareis a morte do Senhor, até que ele venha’ [1Cor 11, 26]. Logo, não lhes cabe matar nem derramar sangue, mas antes estar preparados a derramar o próprio sangue por Cristo, para imitar nas obras o que fazem no ministério. Por isso, está instituído que quem derrama sangue, mesmo sem pecado, o faz irregularmente. Pois a ninguém que seja destinado a uma obrigação é lícito o que o torna incompatível com ela. Portanto, aos clérigos de nenhum modo é lícito fazer guerra, ordenada à efusão do sangue.3
(…) Os prelados e os clérigos, por autoridade do superior, podem tomar parte nas guerras, não, certo, lutando com as próprias mãos, mas auxiliando espiritualmente, com suas exortações, absolvições e com socorros espirituais semelhantes, aos que lutam justamente. Assim, a lei antiga mandava que os sacerdotes fizessem soar, nas guerras, as buzinas sagradas. E, por isso, foi a princípio permitido que os bispos e os clérigos fossem à guerra. Mas só por abuso lutarão os que o fizerem por mãos próprias.4
(…) Ora, as guerras materiais o povo fiel deve referi-las, quanto ao seu fim, ao bem espiritual divino, a que são destinados os clérigos. Por isso, a estes pertence dispor os outros e induzi-los a fazer uma guerra justa, pois não se lhes interdiz fazer guerra porque tal seja pecado, mas por não lhes convir à pessoa tal exercício.”5
Duas considerações práticas seguem-se desta teologia católica da guerra. A primeira: nós, cristãos, jamais deveríamos falar de guerra em termos de liberdade, como faz o mundo, mas sempre em termos de justiça. Um dos maiores desastres ocorridos na civilização moderna foi a democracia ter inscrito “liberdade” em suas bandeiras, em vez de “justiça”. Porque a “liberdade” era tida por ideal, não demorou muito até que alguns homens o interpretassem como significando “estar livres da justiça”; quando, então, a religião e governos decentes tentaram trazê-los de volta à justiça, estes, organizados em “grupos de liberdade”, protestaram, dizendo que seus direitos constitucionais e naturais estavam sendo violados. A injustiça industrial e social da nossa era é o trágico resultado da ênfase excessiva da democracia na liberdade como “o direito de você fazer o que bem entender”. Não, liberdade significa o direito de você fazer o que deve, e implica leis, e leis implicam justiça, e justiça implica Deus. Uma nação, portanto, que luta por uma liberdade divorciada da justiça não tem direito à guerra, pois não sabe para que deseja ser livre, ou para que deseja que qualquer outro seja livre.
O cristão, em oposição ao espírito do mundo, deveria pensar na guerra primeiramente em termos de justiça. Onde quer que haja justiça há liberdade, mas onde há liberdade nem sempre há justiça. Pode haver liberdade sem justiça — e esta é a razão básica para a existência da guerra, hoje: homens querendo estar livres da disciplina e, particularmente, da dependência da Justiça de Deus.
É de fato interessante notar que Nosso Senhor jamais louvou aqueles que buscaram a liberdade separada da justiça. Ele jamais disse “bem-aventurados os que têm fome e sede de liberdade”, mas “bem-aventurados os que têm fome e sede da justiça”6 e “bem-aventurados os que sofrem perseguição por amor da justiça, porque deles é o reino dos céus”7. Paremos, pois, em nome de Deus, de falar em liberdade até que decidamos por que queremos ser livres; enquanto o mundo enlouquece com a liberdade alienada da lei de Deus, desfraldemos a bandeira da justiça — e então seremos livres: “Buscai, pois, em primeiro lugar, o reino de Deus e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão dadas por acréscimo”8.
A segunda consideração: uma vez que o Deus da Justiça é o Deus da Caridade, segue-se que, embora uma guerra possa ser justificada, ninguém deve adentrá-la com um espírito de ódio. Muito frequentemente podemos identificar o que é realmente um pecado contra a caridade através do amor pela justiça. É precisamente contra esse divórcio entre justiça e caridade que a Igreja nos adverte, mesmo em tempos de guerra. A condenação da injustiça não deve estar separada do apelo à caridade e oração, o ódio da inimizade não deve estar separado do amor ao inimigo. A justiça pode exigir, na história, resistência física aos assaltos físicos de um agressor, mas a caridade exige que rezemos para que se converta de suas investidas contra a moralidade e a justiça de Deus.
Como um escritor expressou recentemente no London Tablet:
“Nosso Senhor nos diz para não temer àqueles que podem matar o corpo e depois nada mais podem fazer, e sim àquele que tem o poder de lançar nosso corpo e nossa alma no fogo do inferno. Uma aplicação imediata dessas palavras à nossa situação presente é a de que não deveríamos permitir que nosso inimigo nos induza a cair em pecado. Esta é a nossa questão suprema nesta guerra, bem como em tudo.
Os pecados aos quais é mais provável que um inimigo nos tente são estes três: pecados de intemperança, pecados de dúvida e pecados de ódio. De intemperança, como quando homens deprimidos pela guerra buscam distração em excessos corporais. De dúvida, como quando homens começam a questionar a bondade de Deus, que permite lhes sobrevenham tais maldades. E de ódio, quando os homens negam ao inimigo sua caridade.
O importante para nós, nesses incidentes temporais, é estarmos ao lado de Cristo e de Sua caridade. Não é de modo algum suficiente que nossa causa seja justa. Alguém poderia lutar pelo lado correto, nesse sentido, e ainda assim destruir seu justo propósito ao permitir-se um declínio da temperança, confiança ou caridade. Mesmo as coisas boas desta vida temporal precisam ser cuidadosamente tratadas para que o autoengano não nos domine; não sem profundidade a sagrada liturgia nos ensina a rezar para que passemos pelas coisas temporais de modo a não perder as eternas…
Não é figura de linguagem chamar a Deus nosso Pai e, a nós, Seus filhos. Esta é, de fato, a mais notável letra da verdade, pois somos adotados através de Seu Filho. Essa verdade funciona para as validades da paternidade e da filiação, inclusive em casos de desentendimentos, se podemos dizer assim. É provável, por exemplo, que nós, enquanto filhos, soubéssemos o que é melhor para nós? Não é natural que, no calor do momento e tal como fazem os filhos, víssemos primeiro as dificuldades e compreendêssemos as bênçãos apenas tardiamente?
Pois que há bênçãos, disso não há dúvida: incentivos como o retorno urgente de nossas almas ao estado de graça, se necessário; o cumprimento de um dever há muito negligenciado, como fazer um testamento, pagar uma dívida, perdoar uma ofensa; sofrer uma redução salutar de nosso orgulho de vida; ser forçados a encarar de forma nova e vívida as quatro últimas coisas; e ser tão carentes por todos os lados que somos compelidos a olhar para a última coisa que nos resta, a salvação de nossas almas. Pode até ser que Deus envie essas bênçãos abruptas por muitas e sérias razões, como pelo fato de os católicos estarem cada vez mais complacentes intelectualmente e deteriorados moralmente, e precisem ser acordados para seu verdadeiro negócio de salvação por um severo despertar.
Tradução: Daniel Marcondes
Este texto foi escrito em 1940. — NT
Summa Theologica 2-2ae, q. 104, art. 5.
Summa Theologica 2-2ae, q. 40, art. 2.
Ibid., ad 2.
Ibid., ad 3.
Mt 5, 6.
Mt 5, 10.
Mt 6, 33.
“Já é hora de sairmos do sono.” Rm 13, 11. — NT
London Tablet, 3 de agosto de 1940, pp. 97 e 98.